Por Luara Batalha: “O poder de uma boa tradução”

Como sempre acontece nos meses de dezembro, fiz uma retrospectiva das atividades que desenvolvi nesse ano de 2020 e isso incluiu reler todas as colunas que escrevi para esse site. Me surpreendi com a baixa quantidade de indicações de escritores brasileiros, mesmo nosso país tendo uma variedade deles. Como sempre acreditei que para resolver um problema era preciso compreender sua origem, durante esse momento de terapia literária concluí que essa baixa citação de conterrâneos é um reflexo do tipo de literatura que consumo.

Tudo bem, você pode pensar, é uma dedução um pouco óbvia, mas ainda é preciso chegar ao início dessa “causa”. Muitas das minhas leituras são fruto da influência de séries, filmes e bate papo com amigos. Portanto, como muito do entretenimento brasileiro é, na verdade, estrangeiro, o meu padrão de leitura segue o mesmo caminho. Então, leio mais obras americanas e inglesas, gostando um pouco mais desta última por conta do típico humor ácido e irônico perceptível ao longo das narrações.

Na verdade, nessas mais de três décadas de leitura, tentei até ler livros de outros países, mas nunca havia me identificado com a escrita, sendo resistente de forma mais enfática à literatura russa e à espanhola, por conta do texto truncado e construções frasais mais robustas e complexas. Só que, após uma conversa com um outro escritor sobre o tema, comecei a me questionar se o problema seria a obra ou a tradução. E eis que resolvi fazer uma comparação usando como objeto de estudo Anna Karenina, de Liev Tólstoi, uma obra que eu havia abandonado por não sentir a leitura fluir – e que decidi ler por ter gostado do filme.[1]

Com a troca de editora, e de tradutor, não só terminei o livro, como gostei bastante da forma que alguns personagens foram construídos. A primeira parte da obra chamou mais minha atenção que as demais pela maneira que Anna Karenina é apresentada, como uma mulher alegre e confiante, um perfil que muitas vezes causa inveja e admiração. Com isso, percebi a importância da tradução e como ela pode nos fazer amar ou odiar um texto.

Para exemplificar a relevância disso, trago a mesma frase construída de duas formas diferentes nesse romance russo:

1 – “No terceiro dia após a briga o príncipe Stépan Arkáditch Oblónski – Stiva, como o chamavam em sociedade – à hora habitual, ou seja às oito da manhã, despertou não no dormitório da mulher, mas no seu gabinete, no divã de marroquim. Virou o corpo cheio e bem tratado nas molas do divã, como querendo ainda dormir muito tempo, abraçou com força o travesseiro e apertou contra ele o rosto; mas de repente deu um salto, sentou e abriu os olhos”.

2 – “No terceiro dia após a briga o príncipe Stépan Arkáditch Oblónski – Stiva, como era chamado em sociedade –, na hora de costume, ou seja, às oito da manhã, despertou não no quarto da esposa, mas no seu escritório, num sofá de marroquim. Virou o corpo farto e bem tratado sobre o sofá de molas, como se quisesse de novo dormir demoradamente, abraçou com força o travesseiro, pelo outro lado, e apertou o rosto contra ele; mas, de repente, se ergueu de um salto, sentou-se no sofá e abriu os olhos”.

Observe que uma versão exige uma concentração maior para ser compreendida. Como leio para descansar a mente, prefiro o estilo “1” de escrita, e foi ele o escolhido na minha leitura. Depois de centenas de páginas, acabei por amar e odiar todos os personagens, na mesma proporção. Gostei das críticas nas entrelinhas e a forma que Tólstoi mostrou as qualidades e defeitos de cada um deles. Outro ponto interessante é o fato da narração acompanhar as mesmas pessoas ao longo de anos e apresentar a forma que o meio e as experiências vividas influenciam na conduta do ser humano.

Após toda essa análise, decidi então dar uma nova chance às obras que eu descartei ao longo dos anos. Coloquei essa ação na minha lista de coisas a serem feitas em 2021 e na virada do ano procurarei por novas traduções desses livros. E, depois de tantas linhas, mais uma vez, estou aqui indicando uma obra estrangeira. Irônico, não?

[1] Adaptação de 2013 com Keira Knightley como Anna Karenina, Joe Wright como diretor e trilha sonora de Dario Marianelli. Li o livro por conta do filme e acabei por não gostar da adaptação por terem simplificado Anna Karenina e representarem o Conde Vronsky como o vilão e Alexei Karenin como o injustiçado. A obra escrita explora muitas outras faces de todos eles.


Luar Batalha
@_virandopaginas
Com sangue sergipano, sotaque baiano e mais de 10 livros publicados em sua área, Luara Batalha é engenheira civil, mestre em engenharia de estruturas e atua com ensino e pesquisa. Sempre dedicou parte do seu tempo a expressões artísticas e desde cedo se descobriu uma leitora voraz, mergulhando em obras de diversos estilos. Apaixonada pelas letras, teve seu conto “Invasão de território” publicado na antologia Soteropolitanos e atualmente trabalha no seu primeiro romance.

4 respostas

  1. Acredito nas traduções transparentes e claras para uma leitura mais prazerosa. O que vi mais explicito no parágrafo número 1. Sempre vale a pena lembrar a importância do profissional tradutor.
    Exelente coluna.

  2. Confesso que no decorrer da leitura esperei por uma indicação de autor brasileiro. Tenho lido Raphael Montes e gosto bastante.

  3. Parabéns pelo texto. Já está na minha lista de autoras brasileiras: Carolina Maria de Jesus e seu livro escrito em 1960: Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada”.

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